Kroll pagou servidor por informação, apura PF

Laerte Codonho

Kroll pagou servidor por informação, apura PF

   Um conjunto de 11 depoimentos aos quais a Folha teve acesso revelam como a Kroll, a maior empresa privada de investigação do mundo, infiltrou-se em base de dados da administração pública brasileira. Mediante pagamentos que variavam de R$ 10 a R$ 350, obtinha de servidores públicos informações sigilosas. Valia-se de intermediários. Esse tipo de atividade é ilegal.

O inquérito que investiga a Kroll (12-0352/04) corre na Justiça Federal de São Paulo. Entre as pessoas ouvidas pela polícia estão servidores da Receita Federal, da Caixa Econômica Federal e da Polícia Civil paulista.
A PF suspeita de que eles repassaram à Kroll, por meio de intermediários e mediante pagamento, informações reservadas de empresas e pessoas físicas.
As pistas sobre os colaboradores da Kroll surgiram de documentos apreendidos pela Polícia Federal em outubro do ano passado, na chamada Operação Chacal. Cumpriram-se 16 mandados de busca e apreensão de documentos e equipamentos.
Entre os endereços vasculhados pela PF estavam a sede da Kroll, em São Paulo, e a do banco Opportunity, no Rio de Janeiro. Apreenderam-se papéis também em escritório de empresas que prestavam serviços à Kroll.
Reportagem da Folha publicada em julho de 2004 revelou que a Brasil Telecom, empresa controlada pelo banco Opportunity, contratou a Kroll para investigar a concorrente Telecom Itália.
A investigação acabou esbarrando em autoridades do governo Luiz Inácio Lula da Silva -entre elas o então presidente do Banco do Brasil, Cassio Kasseb, e o ministro Luiz Gushiken (Comunicação de Governo e Gestão Estratégica). Daí o envolvimento da PF.

Subcontratados
Em meio a mais de uma tonelada de documentos apreendidos pela PF, havia folhas impressas com indicações de que haviam sido extraídas de computadores da CEF e da Receita. Em várias páginas, o espaço reservado ao nome do usuário foi cortado. Em muitas outras, porém, não houve o mesmo cuidado. A PF pôde, então, chegar aos servidores públicos.
É o caso do advogado Mauro Osawa, gerente da agência Jardim Bonfiglioli (SP) da CEF. Ouvido pela PF, Osawa reconheceu ter repassado informações sobre empresas e seus empregados, dados que “são acessáveis mediante uso de senha pessoal e são geridos pela própria Caixa”.
Quantidade? Resposta: “Com certeza mais de cem”.
Osawa afirmou nunca ter recebido dinheiro pelas informações. Repassou-as, segundo disse, por “amizade”. Uma das destinatárias foi Márcia Ruiz, que prestou assessoria a diretores da Kroll entre 1999 e 2002.
A PF apreendeu cópia de uma mensagem eletrônica supostamente escrita por Márcia Ruiz. O texto faz menção a uma “solicitação de pagamento para o subcontratado da CEF”. Interrogada, Márcia negou que seja autora do e-mail apreendido.
Subcontratado é, conforme consta do inquérito policial, o termo usado por funcionários da Kroll para se referir a terceiros -servidores públicos ou não- que com eles colaboram.
A PF identificou no depoimento de Márcia Ruiz uma nova pista a ser investigada. Ela disse que, “por diversas vezes, a mando de Eduardo Sampaio, Eduardo Gomide e outros diretores [da Kroll], levou envelopes para agências [da Caixa]” em São Paulo. Contou ainda que trazia de volta outros envelopes, “dos quais não tinha ciência do conteúdo”.
Outro caminho que levou a PF aos subcontratados da Kroll foram correspondências de funcionários da empresa. Dessa fonte surgiu a pista de que o policial civil Edmar Batista cobraria R$ 180 por consulta de cadastro de telefones celulares.
Há 28 anos na corporação, Batista qualificou-se em seu depoimento como um interlocutor do diretor da Kroll Vander Giordano. Disse que “intermediava contatos com policiais aposentados para que fizessem tais investigações [na área de fraudes e falsificações], mas, esporadicamente, especialmente quando se encontrava em férias”, também auxiliava os colegas no trabalho.
Reconhece que “pode ter feito alguma solicitação de pagamento a funcionários da Kroll para a cessão de dados protegidos por sigilo, mas esclarece que isso ocorreu apenas com intermediação dos contatos com os supostos detetives”. Seus honorários ficavam entre 10% e 15% do pacote de uma investigação.
Outro depoimento que aponta a ligação de funcionários públicos com a Kroll é o da policial civil Sueli Leal. Mediante depósitos de R$ 180 a R$ 350, ela confirma ter repassado a um colaborador da Kroll chamado “Vagner” dados aos quais teve acesso por meio de sua senha no sistema interno da corporação, do qual constam antecedentes criminais, registro de veículos, de Carteira Nacional de Habilitação, entre outros itens.

Receita
Os agentes da PF descobriram, por meio da documentação apreendida na sede da Kroll, como a multinacional de investigações tinha acesso a informações sigilosas do fisco. Nos papéis, havia o nome de dois funcionários que trabalhavam na Delegacia da Receita Federal em Guarullhos.
Interrogando os dois servidores -Nivaldo Costa e Rosana Gouveia-, a PF chegou à empresa JRM Serviços Ltda. Aprofundando as investigações, descobriu que a JRM intermediava, em nome da Kroll, o contato com os servidores públicos.
Funcionário do Serpro cedido à Receita, Costa alegou que só repassava à JRM dados disponíveis na internet. Disse que, para ter acesso a dados protegidos por sigilo, a pessoa precisa comprovar vínculo legal com o contribuinte.
Noutro ponto do depoimento, porém, admitiu que “é possível que, mesmo não tendo recebido dinheiro, tenha feito algum favor” para a JRM. Admitiu mais: “Esses favores podem ter sido acesso a dados do sistema” da Receita.
Rosana Gouveia, a outra servidora sob investigação, negou que tivesse vazado dados oficiais. Alegou que sua senha de acesso aos computadores da Receita pode ter sido utilizada pelo colega Nivaldo Costa.
Dos 11 colaboradores da Kroll ouvidos pela PF, só Rosana Gouveia, a funcionária da Receita, escapou do indiciamento. Os demais foram indiciados pelos crimes de corrupção ativa e passiva, formação de quadrilha e violação de sigilo funcional.
A JRM é propriedade de uma família cuja matriarca é Nilza Martins. Os filhos Alexandre e Rafael são os funcionários que atuam sob encomenda da Kroll.
Em seu depoimento, Nilza Martins disse que os serviços que sua empresa presta à Kroll limitam-se “a atividades de extração de cópias”. Alexandre forneceu à PF uma versão mais alentada: “pagamentos efetuados a Nivaldo Costa eram feitos no ato da pesquisa [nos computadores da Receita], variando de R$ 10 a R$ 15 por pesquisa”; “em síntese, a JRM intermediava os contatos com o servidor Nivaldo a fim de que fossem realizadas as pesquisas no interesse da Kroll”, em geral, conforme disse Rafael, sobre pessoas físicas.
Em 2 dos 11 depoimentos há referências ao contrato da Kroll com a Brasil Telecom.
Márcia Ruiz, a ex-funcionária da Kroll que colaborou com a PF, comentou que “presenciou os diretores [da Kroll] felizes pelo valor do contrato recém-fechado”.
A PF ouviu também um ex-servidor do Banco Central, Alcino Ferreira. Ele contou que foi contratado pela Kroll para, entre outros trabalhos, “traduzir” códigos utilizados pelo Banco Central em operações de câmbio.
De acordo com ele, não havia entre os papéis que analisou nenhuma “informação ou documentos que identificassem a empresa Brasil Telecom”.
Os códigos usados para registrar operações cambiais estão disponíveis no site do BC, segundo informou a assessoria de imprensa do órgão.

 

 

Fonte: Folha de S.Paulo

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